Espetáculo “Atomic Joy” leva às ruas e aos palcos a potência das danças negras na Temporada França-Brasil

Atomic Joy/Divulgação
“Imaginem um mundo sem samba, sem salsa, sem jazz, sem hip-hop, sem funk. Será que a gente ainda estaria aqui?” A provocação da coreógrafa, bailarina e artista visual Ana Pi sintetiza a proposta de seu novo espetáculo, Atomic Joy — ou Alegria Atômica, em português — que integra a programação da Temporada França-Brasil 2025.
A montagem parte da ideia de pensar a ausência das manifestações culturais negras para valorizar sua presença fundamental na construção da cultura global. “Imagina se a gente tivesse decidido não dançar”, reforça a artista, em entrevista coletiva acompanhada pela Agência Brasil em Paris.
Com oito dançarinos em cena, o espetáculo articula batalhas e delicadezas em danças urbanas que nasceram nas ruas. A proposta, segundo Ana Pi, é explorar a alegria como resistência. “A alegria também pode ser uma forma de luta. Mas não essa alegria explosiva, barulhenta. É uma alegria mínima, atômica, tênue, pequena e simples”, define.
Negritude, dança e resistência
Segundo o IBGE, mais da metade da população brasileira é negra — 55,5% se declaram pretos ou pardos. Ainda assim, trata-se da parcela da sociedade mais exposta à violência: o Atlas da Violência aponta que uma pessoa negra tem 2,7 vezes mais chance de ser vítima de homicídio no Brasil do que uma pessoa não negra.
É justamente essa mesma população a maior responsável por movimentos culturais potentes e transformadores. Ana Pi, que vive na França há 14 anos, destaca que a rua é um espaço legítimo de criação e comunicação ancestral. “As danças de rua são formas de conexão global. São encontros, são trocas. Muitas vezes parecem competições, mas são rituais de informação em alto nível de exigência”, explica.
Criada entre Belo Horizonte e Salvador, Ana Pi levou sua pesquisa para a França, onde aprofundou o contato com estilos e comunidades diversas. “Paris é um centro vital das danças urbanas. É a cidade que sedia a maior batalha de dança do mundo. E não é por acaso que o breakdance virou modalidade olímpica quando a cidade se tornou sede dos Jogos de 2024”, afirma.
Laços entre Brasil, África e França
A presença negra na França também é significativa. Embora não haja estatísticas oficiais, estima-se que o país tenha a maior população negra da Europa. Segundo dados da Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais (FRA), 29% dos negros entrevistados relataram ter sofrido discriminação no ano anterior à pesquisa, número que sobe para 48% nos últimos cinco anos.
A França também tem uma história colonial ligada à África, com pelo menos 20 ex-colônias no continente, além de manter territórios ultramarinos com população majoritariamente negra, como Guadalupe, Martinica e Guiana Francesa.
É nesse cruzamento de memórias, traumas e diálogos que surge o projeto Oceano Negro, idealizado pela artista franco-camaronense Beya Gille Gacha. Nascida em Paris, filha de mãe camaronesa e pai francês, Gacha reencontrou sua ancestralidade em uma residência artística na Bahia, onde hoje propõe uma nova residência com outras artistas afrodescendentes, voltada exclusivamente para mulheres.
“Foi no Brasil que voltei a criar. Sonhei com dois continentes se aproximando, com Camarões no meio. E entendi que precisava voltar às origens”, conta Gacha, que, em visita ao porto de Bimbia — ponto de embarque de africanos escravizados — viu o nome “Brasil” entre os destinos. “Caí sentada. Era como se eu estivesse completando um ciclo.”
Residência artística como espaço de cuidado
A próxima edição do Oceano Negro ocorrerá em Itaparica, na Bahia, promovendo uma residência de dois meses entre mulheres negras de diferentes origens. A proposta é criar um ambiente de troca, introspecção e fortalecimento artístico. “Raramente temos espaços de criação que também sejam espaços de cuidado. E esses lugares são essenciais”, afirma Gacha.
A artista brasileira Fabiana Ex-Souza, radicada em Paris desde 2010, também participa da iniciativa. Ela destaca que o Brasil, por ter conservado práticas culturais africanas, representa um verdadeiro santuário para muitos da diáspora.
“O Brasil preservou muito do que foi apagado na África por conta das sucessivas colonizações. Por isso, o encontro com o Brasil pode ser tão transformador”, diz a artista, que acrescentou o “Ex” ao próprio nome como gesto simbólico de descolonização. “É uma forma de marcar o espaço entre o nome imposto pela história da escravidão e a minha própria identidade.”
Temporada França-Brasil 2025
A Temporada França-Brasil foi definida em 2023 pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron como uma maneira de reforçar os laços culturais e diplomáticos entre os dois países. Após a Temporada Brasil-França — realizada no primeiro semestre em território francês —, é a vez de o Brasil receber as atividades, de agosto a dezembro.
O evento ocorre em 15 capitais brasileiras, entre elas São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Brasília, Fortaleza e João Pessoa. Os eixos temáticos prioritários são: diversidade e diálogos com a África; democracia e Estado de direito; e mudanças climáticas.
A Agência Brasil acompanhou parte da programação em Paris, a convite do Instituto Francês, que coordena as ações culturais da temporada no país europeu.
Por Paraíba Master